"Limpem o espelho.
Se quiserem, não mexam na mobília.
Mas limpem o espelho :
Vai haver a volta à casa paterna.
Verdade é que não sei se tudo
pode ficar como dantes,
se os sapatos ainda me caberão,
se as roupas apertadas ficarão,
se nos livros as antigas leituras estarão.
Mas limpem o espelho.
O rio pode muito bem
ter desviado o seu curso,
e não encontrarei mais o local
dos banhos à tardinha.
As pedras das ruas possivelmente não
terão mais as marcas dos meus pés,
e nenhum indivíduo me indicará
os caminhos conhecidos.
As árvores mesmo,
se não são outras,
mostrarão velhos troncos
irreconhecíveis.
Perguntarei inutilmente pelos companheiros :
Antonio ? Frederico ? Baltazar ?
Oh vozes que não respondem !
Amigos que jamais verei !
Decerto terei pelo menos
as vozes dos pais ressoando
de leve pelas paredes.
Por isso, limpem o espelho,
porque, apesar de todos os disfarces,
a imagem da criança que se foi há muito
tempo e hoje voltou,
se refletirá nítida e forte,
com a pureza e o encanto
dos seus primeiro sorrisos. "
Odorico Tavares,
"A sombra do mundo "1939.
Obrigado a Bruno Freire,
que postou no facebook o
painel em que está o poema,
na exposição do fantástico
Instituto Ricardo Brennand.