Em 22 de abril de 1969, soube que estava incluído na lista de Medicina, da Federal, incurso no Decreto-Lei 477, com grande possibilidade de ter cassado o direito de estudar lá. O período iniciado pelo ditador Emilio Medici não
veio para brincadeira, a ditadura es-
tava “escancarada”, no dizer de Elio
Gaspari, e sem limites. O Comando
de Caça aos Comunistas (CCC) atuava com liberdade no Recife e em casas de esquerdistas, sob o beneplácito das autoridades estaduais.
No início do mês de maio daquele
ano, numa segunda, como fazia habitualmente, vindo do Hospital Pedro
II, adentrei na Cúria Diocesana da
Rua do Giriquiti, onde me encontrava com o querido Henrique. Ele me
recebeu, como sempre, com seu riso
infantil e bonito. Disse-me saber que
o 477 me pegara e já tinha conhecimento da iniciativa que Dom Helder
tomara de conseguir bolsas de estudo no Exterior, através do Conselho
Mundial das Igrejas Cristãs, onde os
47 incluídos no maldito Decreto pudéssemos terminar o curso médico.
Os jornais do fim de semana haviam estampado a quebradeira que o
CCC fizera por tiros de metralhadora nas vidraças do prédio e a intensa
pichação que esse Comando, composto por jovens endinheirados, fizera nas paredes do prédio secular. E,
simbolicamente, com tinta vermelha: “Fora Arcebispo Comunista!”
Eu andava numa tristeza danada pela perspectiva de ser expulso da Fa-
culdade de Medicina, já no término
do curso, no quinto ano médico.
Quando saímos do Giriquiti, de súbito, Henrique me mostra na esquina oposta, na calçada de um pequeno restaurante, no início da Rua da
Conceição, um homem de meia idade, calvo, com têmporas esbranquiçadas, altura mediana, magro, de cor
moreno-clara, com sobrancelhas algo espessas, nariz afilado, terno bege, camisa branca de mangas longas,
sem gravata. Ele me confessou: “Lurildo, esse homem me segue há uns
quinze dias, onde eu vá, lá está ele!”
Eu lhe disse: “Henrique, parece um
secreta do DOPS!” Ele,
“Deve ser. O
que quer comigo?” “Sei não, tome cuidado”.
Na semana precedente ao seu assassinato, uma quinta, Henrique foi
à pensão onde residia, na Rua Bispo
Cardoso Aires, 223, por volta de
18h30. Convidou-me para ir ver, no
Cine Boa Vista, o filme de Claude
Lélouch, Um homem, uma mulher.
Fomos a pé, na Conde da Boa Vista,
e a seguir, na Rua Manoel Borba. Assistimos ao filme. Quando saímos do
cinema, o amigo me chamou a atenção e me mostrou, de novo, o mesmo
homem, que vira anteriormente, na
calçada em frente. Ele tornou a repetir: “O que esse homem quer comigo?” Tudo indicava ser uma agente
da Secretaria de Segurança, eu apenas declinei, “Tenha muito cuidado!”.
Voltamos pela mesma rota que fizéramos, o dito agente a nos seguir.
Usava o mesmo terno bege, surrado,
como naquela segunda. Notei Henrique com certo temor, mas não se deixava dominar por medo. Ele nos seguiu até o ponto de ônibus, nas proximidades da Gervásio Pires, onde apanhou o mesmo ônibus elétrico que o
amigo, em direção ao Cordeiro, onde
o sacerdote residia.
Na terça de noite, na Escola de Direito, 27 de maio de 1979, vim saber
do assassinato de um sacerdote na
Cidade Universitária, onde foi encontrado o corpo. No dia seguinte, às 8h,
Marcos Burle de Aguiar, já iniciada
sua luta clandestina contra a ditadura, invade o teatrinho do Hospital Pedro II e informa a nossa turma que o
morto encontrado no campus da
UFPE era o do meu amigo.
Diante do seu corpo dilacerado, na
Matriz do Espinheiro, para onde fui
no fusca do colega Roberto Guimarães, chorei profundamente.
Um profundo sentimento de revolta brotou no meu coração, tinha, en-
tão, 22 anos. Acompanhei o enterro
até o Cemitério da Várzea, circunda-
do pela Polícia Militar, cuja interferência brutal em um ato de fé cristã
já mostrava, de modo claro, quem tinha morto o querido Padre.
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