quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Operário em construção, de Vinícius de Moraes, com um lindo sotaque português de Mario Viegas









( E o Diabo, levando-o a um alto monte, 
mostrou-lhe num momento de tempo 
todos os reinos do mundo. 

E disse-lhe o Diabo: 

- Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, 
porque a mim me foi entregue 
e dou-o a quem quero; 
portanto, se tu me adorares, 
tudo será teu. 

E Jesus, respondendo, 
disse-lhe: 

- Vai-te, Satanás; 
porque está escrito: 
adorarás o Senhor teu Deus 
e só a Ele servirás. 

Lucas, cap. V, vs. 5-8. )




Era ele que erguia casas 

Onde antes só havia chão. 

Como um pássaro sem asas 

Ele subia com as casas 

Que lhe brotavam da mão. 


Mas tudo desconhecia 

De sua grande missão: 

Não sabia, por exemplo 

Que a casa de um homem é um templo 

Um templo sem religião 


Como tampouco sabia 

Que a casa que ele fazia 

Sendo a sua liberdade 

Era a sua escravidão. 



De fato, como podia 

Um operário em construção 

Compreender por que um tijolo 

Valia mais do que um pão? 

Tijolos ele empilhava 

Com pá, cimento e esquadria 

Quanto ao pão, ele o comia... 

Mas fosse comer tijolo! 


E assim o operário ia 

Com suor e com cimento 

Erguendo uma casa aqui 

Adiante um apartamento 

Além uma igreja, à frente 

Um quartel e uma prisão: 

Prisão de que sofreria 

Não fosse, eventualmente 

Um operário em construção. 



Mas ele desconhecia 

Esse fato extraordinário: 

Que o operário faz a coisa 

E a coisa faz o operário. 

De forma que, certo dia 

À mesa, ao cortar o pão 

O operário foi tomado 

De uma súbita emoção 

Ao constatar assombrado 

Que tudo naquela mesa 
- 
Garrafa, prato, facão - 

Era ele quem os fazia 

Ele, um humilde operário, 

Um operário em construção. 


Olhou em torno: gamela 

Banco, enxerga, caldeirão 

Vidro, parede, janela 

Casa, cidade, nação! 

Tudo, tudo o que existia 

Era ele quem o fazia 

Ele, um humilde operário 

Um operário que sabia 

Exercer a profissão. 



Ah, homens de pensamento 

Não sabereis nunca o quanto 

Aquele humilde operário 

Soube naquele momento! 

Naquela casa vazia 

Que ele mesmo levantara 

Um mundo novo nascia 

De que sequer suspeitava. 

O operário emocionado 

Olhou sua própria mão 

Sua rude mão de operário 

De operário em construção 

E olhando bem para ela 

Teve um segundo a impressão 

De que não havia no mundo 

Coisa que fosse mais bela. 



Foi dentro da compreensão 

Desse instante solitário 

Que, tal sua construção 

Cresceu também o operário. 

Cresceu em alto e profundo 

Em largo e no coração 

E como tudo que cresce 

Ele não cresceu em vão 

Pois além do que sabia 

- Exercer a profissão - 

O operário adquiriu 

Uma nova dimensão: 

A dimensão da poesia. 

E um fato novo se viu 

Que a todos admirava: 

O que o operário dizia 

Outro operário escutava. 



E foi assim que o operário 

Do edifício em construção 

Que sempre dizia sim
Começou a dizer não. 

E aprendeu a notar coisas 

A que não dava atenção: 


Notou que sua marmita 

Era o prato do patrão 

Que sua cerveja preta 

Era o uísque do patrão 

Que seu macacão de zuarte 

Era o terno do patrão 

Que o casebre onde morava 

Era a mansão do patrão 

Que seus dois pés andarilhos 

Eram as rodas do patrão 

Que a dureza do seu dia 

Era a noite do patrão 

Que sua imensa fadiga 

Era amiga do patrão. 


E o operário disse: 
Não! 

E o operário fez-se forte 

Na sua resolução. 



Como era de se esperar 

As bocas da delação 

Começaram a dizer coisas 

Aos ouvidos do patrão. 

Mas o patrão não queria 

Nenhuma preocupação 

- "Convençam-no" do contrário 
- 
Disse ele sobre o operário 

E ao dizer isso sorria. 



Dia seguinte, o operário 

Ao sair da construção 

Viu-se súbito cercado 

Dos homens da delação 

E sofreu, por destinado 

Sua primeira agressão. 


Teve seu rosto cuspido 

Teve seu braço quebrado 

Mas quando foi perguntado 

O operário disse: 
Não! 


Em vão sofrera o operário 
Sua primeira agressão 

Muitas outras se seguiram 

Muitas outras seguirão. 

Porém, por imprescindível 

Ao edifício em construção 

Seu trabalho prosseguia 

E todo o seu sofrimento 

Misturava-se ao cimento 

Da construção que crescia. 


Sentindo que a violência 

Não dobraria o operário 

Um dia tentou o patrão 

Dobrá-lo de modo vário. 

De sorte que o foi levando 

Ao alto da construção 

E num momento de tempo 

Mostrou-lhe toda a região 

E apontando-a ao operário 

Fez-lhe esta declaração: 

- Dar-te-ei todo esse poder 

E a sua satisfação 

Porque a mim me foi entregue 

E dou-o a quem bem quiser. 

Dou-te tempo de lazer 

Dou-te tempo de mulher. 

Portanto, tudo o que vês 

Será teu se me adorares 

E, ainda mais, se abandonares 

O que te faz dizer não. 



Disse, e fitou o operário 

Que olhava e que refletia 

Mas o que via o operário 

O patrão nunca veria. 

O operário via as casas 

E dentro das estruturas 

Via coisas, objetos

Produtos, manufaturas. 

Via tudo o que fazia 

O lucro do seu patrão 

E em cada coisa que via 

Misteriosamente havia 

A marca de sua mão. 

E o operário disse: 
Não! 



- Loucura! - gritou o patrão 

Não vês o que te dou eu? 

- Mentira! - disse o operário 

Não podes dar-me o que é meu. 


E um grande silêncio fez-se 

Dentro do seu coração 

Um silêncio de martírios 

Um silêncio de prisão. 

Um silêncio povoado 

De pedidos de perdão 

Um silêncio apavorado 

Com o medo em solidão. 


Um silêncio de torturas 

E gritos de maldição 

Um silêncio de fraturas 

A se arrastarem no chão. 


E o operário ouviu a voz 
De todos os seus irmãos 

Os seus irmãos que morreram 

Por outros que viverão. 

Uma esperança sincera 

Cresceu no seu coração 

E dentro da tarde mansa 

Agigantou-se a razão 

De um homem pobre e esquecido 

Razão porém que fizera 

Em operário construído 

O operário em construção.