quarta-feira, 6 de abril de 2022

Pesqueira Secular: Tempo Ilusão.

Pesqueira Secular

Seminário: Tempo e Ilusão

Por José Carlos Cordeiro Freire (*)

-  “É há muitos também que se embaraçam para sempre nestes escombros e permanecem toda a vida agarrados a um passado sem retorno, ao sonho do paraíso perdido, o pior e o mais assassino de todos os sonhos” - Hermann Hesse

         Era uma...Um dia

As manhãs não eram as mesmas. Uma velha sineta que quase caiu na cabeça de alguém, depois virou campainha elétrica, terminava o sono pesado. Os sonhos de um lar distante, de um aperto de mão e de um aceno ao apito do trem, acabavam sem fechar cortinas, sem o costumeiro “FIM”. Pular da cama por obrigação. Não havia saídas. Para ter direito a esquentar-se um pouco mais de tempo e faltar à missa, tinha que haver um sinal objetivo: a febre, a palidez, os olhos afundados ou um inusitado vômito de azeitonas quentes, comidas sem permissão. O padre passava irrecorrível, puxando os lençóis, quando de bom humor, ou ralhando.

A radiola começava junto com a campainha. Tocava “Irmã Sorriso”,  os “Zechinos d’Oro” e Bach. Impossível não amar a “Paixão Segundo São Mateus”, de Bach, depois de ouvi-la tantas vezes junto com a chuva de ventos ou com os passarinhos balançando o cheiro dos eucaliptos. Se a música era o Hino Nacional, canções alegres ou não havia música – a Semana Santa – entrava nos ouvidos também um convite à salivação. Nos dias festivos a cozinha apascentava vorazes apetites de meninos estirando de tamanho (“Vai terminar um varapau, este Milton!”)

A fila de descer do dormitório para a capela, a missa, o café e o recreio. O primeiro recreio do dia, onde se podia soltar a língua, os gritos, a alegria abafada tantas horas. No pingue-pongue a eterna disputa: nos canteiros as cenouras despontando e os cálculos do que fazer dos lucros da colheita. Havia um rádio e o Repórter Esso das 8, que de quando em vez nos arrepiava a alma. No primeiro ano o Papa João XXIIIagonizava. Finalizado por uma igreja sem guia, ofereci, quase sem querer, a minha vida em troca da dele. Encabulei-me tanto, depois que o Reitor soube, que quase desisti silenciosamente da oferta. Deus não aceitou. Em outra tarde as batinas esvoaçavam mais que o normal pelos corredores, entrançadas: Kennedy fora atingida por uma bala. Depois o coração acostumou-se com a incompreensão da morte e dos homens.

A loucura chegou numa manhã ensolarada, na face, entre os cabelos escorridos de um menino branco, Albino de nome. A festa do bispo interrompida para um discurso improvisado do juízo ensandecido. Falou da ida do homem à lua, de eclipses, misturando com Coca-Cola e o trailler de uma comédia italiana chamada “Suzana Tutta Panna”. Ouvimos admirados e temerosos, um riso pronto a explodir, as convicções imaginárias daqueles mundos mentais que não conhecíamos e não podíamos decifrar. Rezas, remédios fortificantes, telegramas e o trem levou o menino delirante, puxado pela mão de um pai seco e nem um pouco abalado: “Este menino sempre o juízo fraco”.

Frutas escondidas sob o chão. Cinquenta e três pinhas num buraco coberto de folhas. As modas de cada estação: baleadeiras, piões, a coleção de selos, os quebra-cabeças, a pescaria de anzol, corrida no garrafão. Valia tudo, e troquei meus cadernos por selos da Alemanha.

Terminava assim o dia do Seminário. Não o dia físico, o dia de vinte e quatro horas, mas o dia como claridade e descoberta, o dia como um grosso lençol onde metia a cara por baixo, e palpei, e descobri, aos pedaços, a mim mesmo. Três ajudas nesta descoberta: uma calçada larga onde no fim das tardes a gente se sentava aos três, aos quatros ou mais, a conversar; o acesso aos livros, fantásticos depositórios de um mundo de grandes dimensões, que me levava ao infinito, fora daquelas paredes grossas e restritas, e o violão. Os dedos machucados na ânsia de aprender logo e uma lágrima ocasional enquanto cantava uma incompreensível balada italiana.
 
Em mim ficou do dia, dia de seis anos, a disciplina criativa, a alegria das amizades e a certeza de que não queria mais ser padre.

             ERA UMA VEZ... UMA NOITE

As muriçocas furando as pernas anunciavam a escuridão. As calças curtas custaram a ser trocadas. A sopa do jantar dava gosto e temor. Deus às vezes não atendia às rezas de antes das refeições ("Abençoai, Senhor, nosso alimento...") e não esterilizava com a sua divina mão a farinha de trigo dada pelos americanos, depois de estocá-la muitos anos. Numa madrugada dolorosa batia seus encontrões nos pés das cercas de aveloz, sanitários ocupados por quarenta e cinco meninos se contorcendo de cólicas e diarréia.

Nas janelas, enquanto se olhava a escuridão, se conversava sobre as namoradas, sobre as cartas trazidas pela cumplicidade das visitas. E se ensinava aos meninos que nasciam os pelos, como ter prazer sozinho. A noite guardava também o escândalo das expulsões a dois. Incompreensível na cabeça dos meninos pequenos aquelas camas vazias. Inventava-se então histórias de roubos, de brigas e discussões... E silenciava-se.

Os quartos dos padres guardavam uma surda disputa de poder, de influências e de invejas miúdas.

Nas noites dos primeiros anos a existência resumia-se quase só naquele mundo pequeno. Não lembro, a não ser muito tempo depois, de ter ouvido falar na tomada de poder de 1964.

Anos depois varei madrugadas, ouvido colado no radinho de pilha, a esperar impotente que o povo checo - pobres povos! - reagi-se à intervenção da Rússia.

Na noite criaram-se os medos, que se foram evanescendo: do padre sem cabeça que espreitava atrás de cada coluna, de cobras a entrar nos terraços, do braço decepado. No fim das noites surgiu o estranho medo de ficar só. Aí me enfronhava nos Livros da Juventude, na coleção de Jorge Amado, na Enciclopédia Jackson. A gente estava mais adulto aos quinze anos, as amizades tinham mais laços e compreensão, mas o mergulho na existência trazia a insegurança. As mãos grandes não cabiam nos bolsos, e cacoetes eram visíveis como o bigode ralo e a voz bitonada: puxava o cabelo com força, enrolando-o.

Numa tarde comum de dezembro saí com minhas malas no Jeep. Não sabia se voltaria ou não. Estava no mundo outra vez. O quarto de casa tinha sido ocupado, o lugar na vida exterior tinha que ser reconquistado novamente, a ferro. Um dia acabava - dia e noite de tantos anos. O que ficou de mais sólido foi a alegria. Os passos não marcaram a grama seca que levava ao portão...

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a)José Carlos Cordeiro Freire - Pesqueirense, médico, humanista e cardiologista. O presente texto, na sua originalidade, integra o livro PESQUEIRA SECULAR - Crônicas da Velha Cidade, publicado em 1980 por ocasião dos festejos de comemoração do centenário da elevação de Pesqueira à categoria de cidade.